Resumo
Este artigo tem como objetivo apresentar e desenvolver o conceito de criança do analista, formulado a partir de experiências clínicas e de reflexões sobre a escuta psicanalítica na clínica com crianças. A noção propõe pensar os atravessamentos afetivos, inconscientes e simbólicos que a criança analisanda mobiliza no analista, convocando zonas regressivas, identificações primárias e fantasias arcaicas. Ao articular autores como Freud, Winnicott, Heimann, Racker, Bion e Pontalis, o trabalho destaca como a contratransferência se torna um campo privilegiado de emergência desse fenômeno. A criança do analista não se refere a uma identidade infantil fixa dentro do psicanalista, mas à irrupção de conteúdos que atualizam experiências precoces, muitas vezes inconscientes, no corpo e na escuta do analista. Tal perspectiva amplia a compreensão da posição analítica na clínica infantil, enfatizando a importância da supervisão, da elaboração contratransferencial e da sustentação da função analítica mesmo diante de zonas de intensa ressonância afetiva. O texto também aborda os riscos de confusão entre sujeito e função, e sugere que o acolhimento lúcido dessas irrupções pode enriquecer a prática clínica e abrir novas vias de simbolização.
Palavras-chave: criança do analista; psicanálise infantil; contratransferência; função analítica; regressão compartilhada.
Abstract
This article introduces the concept of the analyst’s child, a notion that emerges from the intertwining of clinical experience and psychoanalytic theory, especially in the context of child analysis. The term refers not to the patient-child, but to the psychic configurations activated in the analyst during the encounter with the child in treatment. Through a historical and theoretical review of the concept of countertransference—from Freud's initial formulation to developments by Paula Heimann, Heinrich Racker, and others—this work examines how unconscious identifications and emotional resonances mobilized in the analyst can reveal traces of their own internal child. Rather than representing an obstacle, these movements are understood as a fundamental path of access to the analyst’s unconscious participation in the analytical field. The article discusses how these phenomena demand refined listening and elaboration, proposing that recognizing the analyst’s child can open new possibilities for understanding the intersubjective and affective dynamics of the clinical encounter. Ultimately, this concept aims to contribute to the ongoing debate on the role of the analyst’s subjectivity in psychoanalytic practice.
Keywords: analyst’s child; countertransference; child psychoanalysis; analyst’s subjectivity; unconscious resonance.
Introdução
A psicanálise, desde seus primórdios, reconhece a singularidade do sujeito como eixo central da prática clínica. No entanto, a criança, enquanto objeto de discurso social, é frequentemente capturada em generalizações que tendem a apagar sua subjetividade. Freud (1905), ao abordar a sexualidade infantil, já denunciava a dificuldade cultural de reconhecer a criança para além dos ideais normativos da época. Mais tarde, Winnicott (1965) enfatizaria a importância de um ambiente suficientemente bom para a emergência do verdadeiro self, sublinhando que qualquer falha ambiental poderia promover adaptações defensivas que mascarassem a autenticidade do ser.
Na contemporaneidade, essa tendência à generalização da infância intensifica-se no que podemos chamar de "cidade dos discursos", espaço simbólico em que saberes médicos, educacionais, jurídicos e midiáticos produzem representações hegemônicas sobre o ser criança. A criança chega então ao consultório não como um sujeito em aberto, mas como um conglomerado de expectativas, diagnósticos prévios e idealizações. Tal contexto demanda do analista uma escuta ainda mais afinada para não sucumbir à força desses discursos.
Entretanto, o desafio da escuta singular da criança não se limita às pressões externas. Ele também atravessa as fronteiras internas do próprio analista. Desde a formulação do conceito de contratransferência, a psicanálise reconhece que a escuta clínica é permeada por reações inconscientes do analista à realidade psíquica do paciente. Heimann (1950) foi pioneira ao afirmar que a contratransferência é, inevitavelmente, uma ferramenta de compreensão, desde que o analista esteja suficientemente atento para diferenciar o que lhe pertence daquilo que é evocação do mundo interno do analisando. Racker (1968), por sua vez, aprofundou a questão ao demonstrar como identificações inconscientes podiam tanto enriquecer quanto distorcer a interpretação clínica, dependendo do grau de elaboração do analista.
É nesse cenário, onde forças externas e internas concorrem para desfigurar a singularidade da criança em análise, que surge a necessidade de olhar também para o analista, para aquilo que nele se movimenta silenciosamente durante o encontro clínico. Trata-se da proposta deste artigo: a introdução do conceito de "a criança do analista". Trata-se da dimensão infantil inconsciente do próprio analista, que pode ser reativada especialmente no trabalho com pacientes crianças. Quando não reconhecida ou suficientemente elaborada, essa "criança interna" tende a interferir na escuta, promovendo generalizações, projeções e interpretações que mais refletem os conflitos não elaborados do analista do que a realidade psíquica do paciente.
A proposta aqui, delineada, busca, portanto, ampliar a reflexão sobre os desafios da clínica da infância contemporânea, articulando o fenômeno da generalização infantil à dinâmica intrapsíquica do analista, em diálogo com a tradição psicanalítica e atento às novas exigências impostas pela cidade dos discursos.
Fundamentação Teórica
A construção do conceito de “a criança do analista” exige uma consideração cuidadosa sobre a posição que o analista ocupa frente ao paciente, especialmente a criança, e frente aos discursos dominantes que atravessam a prática clínica. Para tanto, é necessário revisitar algumas noções fundamentais da teoria psicanalítica, como contratransferência, identificação inconsciente, regressão controlada e o próprio ato de escutar e interpretar.
Contratransferência: da resistência ao instrumento clínico
Freud (1910) introduziu o conceito de contratransferência para descrever os sentimentos inconscientes que o analista desenvolve em relação ao paciente, inicialmente vistos como uma ameaça à objetividade da análise. Mais tarde, ao longo de seu trabalho, Freud (1912) reconheceu que a contratransferência poderia ser utilizada como ferramenta interpretativa, desde que o analista estivesse suficientemente atento a seus próprios processos inconscientes.
Foi Paula Heimann (1950) quem operou uma virada decisiva ao afirmar que a contratransferência não era apenas um obstáculo, mas o instrumento mais sensível para compreender o paciente. Heinrich Racker (1957) ampliou essa visão, desenvolvendo a ideia de contratransferência total, a interação dinâmica entre transferência e contratransferência, inseparáveis na experiência clínica.
Assim, a escuta analítica não pode prescindir da vigilância sobre os próprios afetos e movimentos internos do analista. Quando essa vigilância falha, a escuta corre o risco de se tornar colonizada por ressonâncias inconscientes não elaboradas, gerando distorções que obscurecem a singularidade do paciente.
Identificações inconscientes e regressão controlada
A identificação, desde Freud, é um mecanismo central na constituição do psiquismo (Freud, 1921). No setting analítico, o analista inevitavelmente se vê atravessado por identificações inconscientes com aspectos do paciente. Em se tratando do atendimento infantil, essas identificações tendem a evocar registros primitivos, exigindo do analista uma capacidade de regressão controlada.
Winnicott (1955) descreve a importância da regressão do analista como uma condição para a oferta de um ambiente suficientemente bom, capaz de conter e compreender o paciente em sua dependência. Contudo, essa regressão precisa ser sustentada por uma função reflexiva madura; do contrário, pode arrastar o analista para um estado de confusão, colusão ou atuação.
Didier Anzieu e René Roussillon (1991) apontaram ainda para o fenômeno da "zona de regressão compartilhada", na qual paciente e analista mergulham juntos em camadas profundas do inconsciente, aumentando o risco de contaminação mútua se a função analítica não for mantida.
O escutar e o interpretar: entre presença e distorção
O ato de escutar na psicanálise não é passivo. Como nos lembra Bion (1962), o analista deve sustentar uma "capacidade negativa", a habilidade de suportar a incerteza, a dúvida e o não saber, sem precipitadamente organizar o material do paciente em categorias prévias. A escuta exige uma abertura para ser afetado sem ser capturado.
Pontalis (1981) propôs a ideia de "escutar com o inconsciente", sublinhando que não é o eu racional do analista que interpreta, mas o seu inconsciente em diálogo com o inconsciente do paciente.
Quando o analista perde essa disponibilidade e cede à pressa de interpretar ou categorizar, a escuta se fecha, e a tendência a generalizar, especialmente no atendimento a crianças, onde estereótipos sociais estão fortemente enraizados, se acentua.
Se o ato de escutar exige abertura e capacidade negativa, a clínica infantil tensiona ainda mais essa exigência, uma vez que nela o analista é confrontado com suas próprias idealizações e pressões culturais, como veremos a seguir.
Riscos na clínica: a escuta comprometida
Lacan (1953) alertava para o risco de o analista se identificar com a posição do "sujeito suposto saber" de maneira ingênua, acreditando-se detentor da verdade do paciente. Esse deslizamento identificatório é ainda mais perigoso quando o objeto transferencial é uma criança, pois há uma pressão social para que o adulto compreenda, eduque, corrija.
É nesse ponto que a criança do analista, a parte infantil inconsciente que habita o analista, pode se infiltrar na escuta, promovendo respostas emocionais, identificações precipitadas e interpretações projetivas. A não elaboração desse fenômeno compromete a função analítica, convertendo a singularidade do paciente em uma repetição de conflitos não resolvidos do próprio analista.
A criança do analista
No exercício da clínica com crianças, o analista é inevitavelmente convocado a mobilizar registros psíquicos primitivos. Propõe-se aqui o conceito de “criança do analista” para designar o conjunto de afetos, identificações e fantasias inconscientes que emergem no analista a partir da interação com o paciente infantil. Por 'criança do analista', entendemos a configuração inconsciente da infância internalizada do próprio analista, cuja emergência no setting infantil pode tanto enriquecer quanto distorcer a escuta clínica, dependendo de seu grau de reconhecimento e elaboração. Essa dimensão infantil interna, se não reconhecida, tende a infiltrar a escuta e a interpretação, comprometendo a função analítica.
A criança do analista manifesta-se em movimentos de identificação projetiva, em ansiedades de cuidado, em impulsos educativos ou em reações afetivas desproporcionais. Sua emergência silenciosa, especialmente em uma clínica infantil marcada por fortes expectativas sociais, impõe ao analista a tarefa constante de discriminar o que pertence ao seu mundo interno do que é efetivamente transferido pelo paciente.
Quando pensamos na "Cidade dos Discursos", deparamo-nos com um cenário saturado de significações normativas sobre a infância. Discursos pedagógicos, médicos, jurídicos e familiares conformam um campo que não apenas generaliza a criança, mas também orienta, muitas vezes inconscientemente, as contratransferências do analista. A criança do analista, nesse contexto, tende a se expor com ainda mais intensidade, impulsionada pelas identificações culturais que atravessam o próprio analista em seu lugar de sujeito da cultura.
Reconhecer e elaborar essa criança interna não é um adereço teórico, mas uma condição de possibilidade para sustentar a clínica da singularidade infantil frente às pressões homogeneizadoras da cidade dos discursos.
Ilustração clínica: a criança do analista em ato
Suponhamos um analista que, diante de uma criança retraída em sessão, é tomado por uma urgência de "salvá-la" do silêncio. Movido por uma ansiedade que ultrapassa a situação clínica, ele insiste em propostas lúdicas ou interpretativas que visam, antes de tudo, aliviar sua própria angústia frente à passividade do paciente.
Nessa cena, não é apenas a criança do paciente que se apresenta: a criança do analista, talvez aquela que, no passado, vivenciou a solidão como ameaça, se infiltra na escuta e na intervenção.
Esse deslocamento, se não percebido, faz com que o analista generalize o sofrimento do paciente a partir de seus próprios conteúdos inconscientes, impedindo a escuta da alteridade radical que a clínica com crianças exige.
Compreensão da Contratransferência na Clínica Infantil
A contratransferência na clínica infantil, embora herde os fundamentos descritos por Freud (1910) e posteriormente ampliados por Paula Heimann (1950) e Heinrich Racker (1957), apresenta matizes particulares. O analista, ao se deparar com o material infantil, frequentemente se vê diante de ativações inconscientes mais primárias, ligadas a registros pré-verbais, às suas próprias vivências de dependência, abandono, medo ou prazer. A intensidade e a qualidade afetiva que a criança em análise evoca podem reativar no analista estados regressivos que não se apresentam da mesma maneira na clínica com adultos.
É nesse contexto que propomos o conceito da "criança do analista", uma configuração inconsciente que, quando não reconhecida, pode distorcer a escuta e a interpretação, levando o analista a generalizar ou a projetar conteúdos seus sobre o paciente.
Além das dinâmicas internas, a "criança do analista" não emerge em um vácuo. A cidade dos discursos, entendida aqui como o conjunto de narrativas sociais, culturais e históricas que moldam a percepção sobre a infância, atua como um campo que alimenta e colore as ressonâncias inconscientes do analista. Representações idealizadas, patologizantes ou romantizadas da criança, amplamente circulantes no imaginário social, podem encontrar eco nas camadas infantis reativadas do analista, influenciando suas reações afetivas e cognitivas de maneira silenciosa.
Assim, quando a cidade descreve a criança como naturalmente "frágil", "manipuladora", "sábia" ou "vulnerável", tais imagens podem ativar identificações inconscientes no analista, seja por adesão, seja por resistência. A escuta, nesse caso, corre o risco de ser atravessada por essas fantasias coletivas, sem que o analista perceba que não está apenas respondendo ao que o paciente traz, mas também à sua própria criança interna impregnada dos discursos sociais que a cercaram e ainda cercam.
Reconhecer a influência da cidade dos discursos é, portanto, fundamental para que o analista possa distinguir o que, em sua contratransferência, pertence ao campo criado com o paciente e o que ressoa de suas próprias vivências infantis amalgamadas às narrativas sociais. Este discernimento é o que possibilita sustentar uma clínica capaz de respeitar a singularidade do paciente, evitando a armadilha da generalização.
Considerações finais
A proposta do conceito de “criança do analista” visa iluminar uma zona sensível da clínica infantil: aquela em que o analista, sem perceber, arrisca abandonar sua função de testemunha da alteridade para repetir, ainda que com as melhores intenções, seus próprios roteiros inconscientes.
Em tempos em que a criança é capturada pela cidade dos discursos e transformada em objeto de generalizações pedagógicas, clínicas e sociais, torna-se urgente que o analista sustente um trabalho ético de vigilância sobre si mesmo.
Reconhecer a presença viva da própria criança interna não implica sua eliminação, mas sua elaboração constante, condição indispensável para preservar a singularidade do pequeno sujeito em análise.
Somente assim, resistindo às forças de homogeneização externas e internas, a clínica poderá permanecer como um espaço de invenção de subjetividades, e não de reprodução de discursos.
Referências bibliográficas
Freud, S. (1905). Three Essays on the Theory of Sexuality.
Winnicott, D. W. (1965). The Maturational Processes and the Facilitating Environment.
Heimann, P. (1950). On Countertransference.
Racker, H. (1968). Transference and Countertransference.
Freud, S. (1910). Some Additional Notes on the Psycho-Analytic Observation of Children.
Freud, S. (1912). The Dynamics of Transference.
Heimann, P. (1950). The Role of Countertransference in the Therapeutic Relationship.
Racker, H. (1957). The Countertransference: A New Approach.
Freud, S. (1921). Group Psychology and the Analysis of the Ego.
Winnicott, D. W. (1955). The Theory of the Parent-Infant Relationship.
Anzieu, D., & Roussillon, R. (1991). The Shared Regression Zone: Mutual Contamination
in the Analytic Process.
Bion, W. R. (1962). Learning from Experience.
Pontalis, J.-B. (1981). The Unconscious.
Lacan, J. (1953). The Function and Field of Speech and Language in Psychoanalysis.
Freud, S. (1910). The Sexual Aberrations and the Development of the Sexual Instinct.
Heimann, P. (1950). Countertransference and the Process of Therapeutic Understanding.
Racker, H. (1957). Countertransference in the Analysis of Children.
👉 Marcar sessão
Comentários
Postar um comentário